domingo, 31 de julho de 2011

Morre em Fortaleza Júlio Trindade, 65, dono do Pirata Bar


O resgate de 65 anos vividos em diversos países e contados de forma irreverente, foi o legado que Júlio Trindade deixou para a família e amigos, antes de morrer devido a um cancer no cérebro na noite de sábado (30).

No texto, ele conta sobre as diversas profissões que teve, desde descarregar caixas de legumes no Mercado Les Halles, em Paris, passando por garçom no Chez Antoine, como situações inusitadas onde pagou pelo combustível do trio elétrico do Olodum no circuito do carnaval de 1992. Encerrando o texto, ele usa de irreverência para falar da própria doença. “O tumor na minha cabeça tem um lindo nome – astrocitoma, e me fez viver a maior de todas as minhas aventuras”.

O dono do tradicional Pirata Bar, conhecido internacionalmente pelo lema de “A segunda-feira mais louca do mundo”, lutava contra o câncer há quase um ano. De acordo com a família, o corpo será cremado nesta segunda-feira (1º) em local que não foi divulgado.

Confira o texto na íntegra:

Origem
Meu nome é Antonio Julio de Jesus Trindade, mas gosto de assinar como Julio Pirata d’Iracema. Nasci em Lisboa, em 10 de março de 1946 e orgulho-me de ser filho de mãe camponesa e de um pai torneiro mecânico, criado com todo amor e carinho que puderam me oferecer. Tive uma infância maravilhosa e quando adolescente, joguei como goleiro pela Seleção Juvenil de Portugal. Meu pai tinha ideologias muito fortes, e com ele aprendi a defender meus princípios e contestar diretrizes que considero injustas. Sou da geração de 60, que viveu muito intensamente a quebra de paradigmas, período em que deixei Portugal (1964), pois não queria servir ao exército em uma guerra colonial na Angola, pois o Rambo americano já é triste, imagine o português!
Paris foi meu primeiro destino e me ensinou muitas coisas. Aprendi a falar francês fluente com sotaque parisiense e nenhum francês percebe que sou de fora. Conheci Yane em 1966 e então casamos, hoje somamos 45 anos de convivência. Em 68 tivemos o Rodolphe, nosso único filho. Fizemos muitas viagens pelo mundo, mas sempre retornávamos para a França, aquele país foi nossa casa durante 15 anos.

Viagens e Aventuras
Na minha concepção, passar a vida num lugar só porque nasceu ali é muito comodismo. Sempre procurei o lugar ideal para viver e este seria o que eu mais me identificasse. Em busca de qualidade de vida, passei um período de 5 anos em Nice, no Sul da França, como agricultor.

“Passar a vida num lugar só porque nasceu ali é muito comodismo”

Minha família foi a primeira a exercer uma postura ecológica na região que vivíamos. De forma auto-sustentável, experimentamos comer só o que plantávamos, sem qualquer agrotóxico. Criávamos cabras e nosso sustento vinha da venda de queijos da produção de leite. Por duas vezes o nosso queijo foi eleito o melhor da região em feiras agrícolas.
Nas viagens seguintes, conheci os Estados Unidos começando de San Diego até Seattle. Também subi para a British Columbia, no Canadá, que gostei mais pelo sistema político, por ser uma sociedade muito tranquila e democrática. Morei um tempo em Saint Martin, no Caribe. Para quem quer desbravar o mundo, é importante estar atento ao que está acontecendo no destino desejado. Eu procurava informações dos lugares que pretendia visitar, lia jornais e me atualizava a respeito dos países na minha rota e era infalível, isso facilitava minhas estadias.

Trabalho
Por onde passei, exerci diversas funções e muitas delas pela primeira vez. Lavei pratos, faxinei banheiros, descarreguei caixas de frutas e legumes no antigo Mercado Les Halles em Paris, fui recepcionista noturno de hotel, garçom e maitre no Chez Antoine, um restaurante finíssimo de San Martin, no Caribe. Lá, servi grandes personalidades como o ex-presidente Richard Nixon e Jaqueline Kennedy Onassis, eu tinha um ótimo salário e recebia generosas gorjetas. Além disso, tive uma banca de jornal, e prestei serviço de analista de sistema para as Forças Armadas Francesas na década de 70. Ainda pesquei Salmão no Canadá, dirigi o Banzo Bar, o restaurante do Hotel Pelourinho e a Pousada da Praia do Forte na Bahia. No Ceará tentei pescar lagosta sem sucesso, até abrir o Pirata, minha caminhada foi longa e cheia de imprevistos.

“Decidi que o Olodum não podia ficar de fora da Avenida, e forneci todo o diesel necessário para o circuito”

O Brasil começou na Bahia
Entrei no Brasil em 1981, através da região Norte. Trindade não é só o nosso nome, eu, Yane e Rodolphe estamos juntos o tempo todo. Pegamos um ônibus semi-leito em Belém do Pará e descemos até Salvador, onde um dia após nossa chegada iniciei meu primeiro negócio, o Banzo Bar, no Pelourinho. Mais tarde também arrendei o restaurante do Hotel Pelourinho e abri uma pousada na Praia do Forte. Na Bahia fiz muitos contatos e vivi um momento privilegiado social e empresarialmente falando. Lembro da primeira vez em 1982 que o Olodum saiu no carnaval de Salvador. O grupo estava sem dinheiro para abastecer seu trio elétrico e eu fiquei sabendo. Decidi que o Olodum não podia ficar de fora da Avenida, e forneci todo o diesel necessário para o circuito.

O Projeto Tamar é outro trabalho que tive a oportunidade de participar no início, me orgulho de ter criado o primeiro logotipo da marca que é muito conhecida hoje em dia. Quando abri a Pousada da Praia do Forte, a região era muito primitiva, nesses tempos não existia ponte sobre o Rio Pojuca e a travessia para a praia era feita de balsa. A energia tinha acabado de chegar no local. Nenhum trabalhador tinha carteira profissional assinada, eu fui o primeiro empregador a assiná-las e praticar a legislação trabalhista. Por dois anos seguidos (83, 84), a nossa pousada foi eleita pela Revista Playboy como o melhor empreendimento do Brasil.

“No ano em que comecei a pescar, a lagosta sumiu do mar do Ceará, tudo conspirou para o fracasso”

Um lar no Ceará
Morávamos na Bahia quando um amigo cearense convidou-nos a conhecer a Praia da Baleia. Em menos de seis meses após a visita nos mudamos para cá. A Família Trindade escolheu o Ceará, pois se apaixonou por ele. Vendemos todos os nossos negócios na Bahia e começamos do zero aqui. Em 85, comprei um barco lagosteiro de primeira linha e tinha uma equipe de oito homens para executar a pesca profissional. Nos anos anteriores, os pescadores voltavam com até 1 tonelada de calda. Mas no ano em que comecei a pescar, a lagosta sumiu do mar do Ceará, tudo conspirou para o fracasso, choveu muito, o clima mudou e anteriormente, houve muita pesca predatória.

Meses depois eu descobri que tinha iniciado um mau negócio, após investir grande parte do dinheiro. Mais tarde, investiguei a história do barco com proprietários anteriores que fizeram tudo certo e também quebraram, ouvi relatos de mortes no mar e em terra, durante consertos da embarcação. Eu o vendi para outro pescador profissional de lagosta que veio a quebrar. Hoje sei que o barco era amaldiçoado.

Queríamos muito viver num lugar tranquilo, em paz com a natureza, mas com o projeto lagosteiro arruinado, decidimos nos mudar para Fortaleza, que em 85 ainda era uma cidade provinciana. Enfrentei muito nariz torcido por causa do meu bigodão, cabelos compridos e as roupas coloridas. No comércio, as pessoas verificavam meu cheque várias vezes antes de recebê-lo. A Fortaleza de hoje é outra cidade, não para de crescer, tem muitos executivos formados, empreendedores e gente que entende de negócios.

O Pirata: dificuldades até o sucesso
Como empreendedor, o Pirata representa meu último suspiro. Não era novidade na minha vida abrir um negócio em que só eu acreditava. Para abrir o Pirata, vendi os últimos bens de valor fazendo fundo de caixa: uma coleção de whikys famosos, um excelente aparelho de som que quase ninguém tinha na época e até meu carro. Inaugurei o Bar às pressas sem estar pronto para isso, porque precisava levantar dinheiro e depositar alguma coisa na conta do banco evitando que ela fosse encerrada por falta de fundos.

O nome “Pirata” provocou comentários de rejeição entre os meus amigos. Encontrei dificuldade até para fazer os cartões de visita. Eu e meu filho Rodolphe, que já éramos sócios, custamos a encontrar o único tipógrafo no centro da cidade que usava a fonte que queríamos impressa nos cartões. Até a escolha pela cor do papel foi complicada, porque queríamos que fosse preto e não existia no mercado, o tipógrafo deu-se o trabalho de pintar.

Depois de ter o Banzo e a Pousada da Praia do Forte, era evidente que eu tinha de recomeçar no ramo de bar e restaurante e que seria na Praia de Iracema, pois me identifiquei com o bairro. Em 1986 Fortaleza tinha uma lacuna nesta área e havia poucas opções que agradavam a juventude.
Hoje, em qualquer lugar do Brasil ou do mundo, quando se fala de Fortaleza, na maioria das vezes fala-se do Pirata também. Como empresário isso me enche de orgulho e felicidade.

“Foi propagando a música, o forró e a música brasileira para dançar a todos os cantos que o Pirata se tornou referência de Fortaleza”

Julio e a música
O grande sanfoneiro Azeitona e seu trio pé de serra deram início ao Forró do Pirata e desde então este ritmo e suas tradições tem ocupado um espaço muito importante na programação da casa e na minha vida. Dorgival Dantas também fez parte da família Pirata durante cinco anos, e há mais de 11 anos que a quadrilha do Zé Testinha se apresenta todas as segundas-feiras no Pirata, mostrando toda a força da cultura do cangaço. O primeiro show Profissionalmente fuleiro do Falcão foi no Pirata, assim como Lailtinho brega vencedor da Meirinha e Rosicléa na final do 1º festival brega e corno do Brasil em 1989. E inúmeros músicos e artistas deixando um grande legado musical e cultural.

Foi propagando a música, o forró e a música brasileira para dançar a todos os cantos que o Pirata se tornou referência de Fortaleza e do Ceará para o Brasil e para o mundo. Oferecendo espaço e condições de trabalho para novos artistas, hoje, tenho a sensação de dever cumprido por lutar pela cultura de Fortaleza e do Ceará e perceber o valor dos artistas locais.

Um Pirata de princípios
O Pirata é um lugar que encontrou no Ceará sua razão de existir e para mim é muito mais que uma empresa, é um elo privilegiado à sociedade, me deu oportunidade de exercer cidadania de forma grandiosa, é bom sentir que podemos exercer boas influências nas pessoas, ter um discurso prático através do exemplo, mostrando como se faz.

Defendendo este pensamento, comprei uma briga nos anos 90, no Distrito de Caetanos, em Amontada, quando tentaram injustamente expulsar mais de cem famílias de pescadores a fim de criar um assentamento. Foram muitos anos de batalha sofrendo atentados, e graças a uma reportagem do Moacir Maia, no Fantástico denunciando tamanha crueldade, conseguimos com que estas famílias não fossem expulsas. De lá para cá sou visto como amigos por uns, e por outros como um empreendedor predatório do grande capital internacional querendo explorar o trabalhador. Talvez minha maior tristeza seja não ter o reconhecimento do trabalho feito nesta região, onde fundamos a primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN de praia do Brasil em 1993 com mais de 500 hectares e mais de 2 km de praia. Como eu poderia preservar de um lado e destruir do outro?

“Dói meu coração quando ouço comentários maldosos a respeito do Pirata”

Temos ações importantes há mais de 20 anos através da Fundação Pirata Marinheiros criada em 1991. Nunca saí gritando nas ruas nem fiz propaganda pelas minhas contribuições sociais, apenas fiz o que foi preciso e estava ao meu alcance para melhorar a vida das pessoas dentro das suas necessidades. O trabalho social não é apenas usufruir do mérito de fazê-lo, mas sim instinto, sensibilidade e o olhar que temos para com o outro. Por causa disso, fui agraciado em 99 com o título de Cidadão Fortalezense, concedido pela Prefeitura de Fortaleza. Em março de 2007, recebi outro título, o de Cidadão Amontadense, conferido pela Prefeitura Municipal de Amontada e em agosto do mesmo ano, a Assembléia Legislativa do Ceará me presenteou com o título de Cidadão Cearense. Tudo isso faz parte da pessoa que sou hoje, não somente porque me naturalizei brasileiro, mas porque me sinto verdadeiramente daqui, sem precisar me dissociar das outras origens.

Dói meu coração quando ouço comentários maldosos a respeito do Pirata. Infelizmente, ainda existe muita gente preconceituosa em Fortaleza, que desconhece nossa filosofia de trabalho, que nunca teve o prazer de brincar sequer uma segunda-feira, mas blasfema contra um dos patrimônios do Ceará e da Humanidade.

Sei que muitos me amam e muitos outros me odeiam, mas todos me respeitam, não sei ser metade, sou sempre inteiro! Sou Antonio Julio Pirata d’Iracema, devoto de Santo Antonio, filho de Ogum e brasileiro por amor.


Fonte: Forrozeiros.com

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